Espetáculo


“Cento e vinte e cinco dias”, repetia em sussurros, enquanto ouvia Chopin. Sim, ela os contava. Um por um. E agora, deitada no quarto escuro, lembrava-se da sensação que tinha toda vez que ele estava à porta. Sempre às sextas, no mesmo horário. Pontualmente, de forma sincronizada com o tocar dos dedos dele na campainha, o coração dela ensaiava um disparar -tal como o ritmo que agora acelerava no concerto do pianista que ouvia. Ele era o que Mia ansiava durante toda a semana. E ao fechar os olhos, ela podia sentir como era tê-lo por perto.

Arrumava o cabelo no espelho do quarto, descia as escadas em tempo recorde e abria a porta esperando ser beijada. Ainda tinha dois segundos para sentir o perfume, antes dos lábios se tocarem. Quando se uniam, não podia pensar em mais nada. O corpo repetia aquela coreografia excitante: a língua deslisava sobre a dele (e por baixo, e pelos cantos...), as borboletas se agitavam no estômago, os pelos acordavam e o cérebro controlava os pés – se não os forçasse contra o chão, sentia que se desprenderiam e ela flutuaria, escapando daquele beijo. E só o que ela queria, antes e agora, era permanecer nele. Fazer parte daquela ópera de desejo.

Sem ele não havia espetáculo. Mia sentia-se em um teatro vazio, enquanto as notas que saiam do piano, como eternas namoradas, encaixavam-se perfeitamente para compor a melodia que a perturbava. Reconhecia a sensibilidade e genialidade de Chopin. Mas sabia que incomparável mesmo era aquele som da campainha, que há cento e vinte e cinco dias não era regido pelo maestro da orquestra que ela mais gostava.

Tratado de Coexistência


Não era só uma carta de amor. Aliás, nem era de amor que ela falava. Era sobre orgulho ferido, medo e alguma dose de arrependimento. Esse coquetel de sentimentos pós-namoro pode ser facilmente confundido com amor residual. Mas não era. Era pura dor-de-cotovelo. Ora, durante todo o ano em que estiveram separados, a ausência dele não a incomodava tanto, por que isso agora? Talvez porque o problema não fosse a falta, mas a presença.

Ela só percebeu que ele estava presente, que existia de fato, quando o viu com outra. Ali Rodrigo deixou de ser uma alma penada e reencarnou naquele amante. Não era mais só o ex que mandava sinais vez ou outra, na tentativa de resolver “assuntos inacabados”. Era o ex que jantava fora com a namorada nova e isso incomodava. “Devemos temer os vivos, não os mortos”.

E ela que há tanto acreditava que ele não viveria sem ela... Como comensalismo: ele foi a rêmora que precisava dos restos do tubarão Ana para sobreviver. Foi, não era mais. Ana continuava a comer, mas Rodrigo não apreciava mais as migalhas. Ele tinha a outra, a nova, a namorada, para servi-lo um banquete. Ver como ele saboreava de novo o gostinho de comida feita na hora doía muito.

Lembrou-se de quando eles provavam juntos as coisas frescas. Lembrou-se de como, com o tempo, a familiaridade com o sabor embrulhava o estômago. Foi nessa fase que Ana escolhera a separação. Precisava, desesperadamente, experimentar o novo. Mas um ano depois, quando Rodrigo estava com ela, bem ali, diante dos seus olhos, entristeceu-se. Deixou o restaurante de sempre e começou a escrever a carta.

Tentou organizar em palavras o tanto de sentimento que tinha. Não era só uma carta de amor. Era uma rendição e, ao mesmo tempo, um decreto de alforria. O necessário para que coexistissem. Colocou em um envelope, deixou com o porteiro do prédio dele no dia seguinte. Ligou para um amigo: Ana finalmente tentaria culinária japonesa essa noite.

(Re)animação cardíaca


Ela olhou nos olhos dele, o corpo todo gritava por dentro. Sentiu um pequeno arrepio e soltou um daqueles suspiros de filme: estava mesmo gostando disso tudo. Com a mesma intensidade, estava desesperada com a situação. Não estar no controle nunca esteve em seus planos. E ele nem era “cool”. Não tinha olhos verdes. Faltava quase 20cm para que o sapo atingisse a altura mínima requisitada para príncipe. Sobrava pelo. Ainda assim, o coração idiota insistia em acelerar quando Ana via aquele sorriso bobo de Domênico. “Nome estúpido”, bufou ela. Não era bonito, não soava bem e nem dava pra tirar um apelido daquela “graça” de vovô. Irremediavelmente apaixonada. E ela sabia.

Saber que ainda tinha um coração era até legal. Fazia tempo desde a última vez que Ana estava tão confortável e dependente de alguém. Desastre. A última vez tinha sido tão intensa: 30 dias de liberdade e tesão incontroláveis, seguidos por 3 dias de choro inesquecíveis. Certamente, ela não queria aquilo de novo. Ok, tinha saudade da parte do desejo. Lembrar do tempo de fossa é que ofuscava o saudosismo. Ana estava vulnerável. De novo. Sem chance para achar o caminho de volta. “Por favor, o botão de reset?”, repetia para si mesma.

Não encontrou o botão, menos ainda o príncipe. Foi interrompida pelo barulhinho do torpedo: “Fica linda assim perdida nos pensamentos...”. Sorriu e encontrou o sorriso-gêmeo do outro lado da sala. Nele. Quando as borboletas se agitaram no estômago, teve a certeza de que sapos são bem mais interessantes.

Quarto Arrumado


Chuva a deixava de mau humor. Mas naquele dia, o pingar do lado de fora era só uma materialização do choro guardado, que ela escondia por imaturidade. Fato que não era toda a cidade que chorava, mas o egoísmo e a melancolia sussurravam que a chuva era toda dela naquele instante – perfeito cenário de tarde triste. Precisou olhar a pulseira pela última vez antes de junta-la aos papéis amarelados e bugigangas na caixa de papelão que ia para o lixo.

Lembrou do entrelaçar de alegria e tristeza com que recebeu aquele presente. Há cinco anos ela já sabia que teria a cena para sempre na lembrança. Mas a dor ainda não era palpável, apesar de previsível. Naquela tarde é que conseguiu entender as palavras que ouviu quando abria o embrulho: “Para que não esqueça o que tivemos”. Ela nunca esqueceria.

Quando só a distância física importava, não passava um só dia sem pensar nele e no sorriso bobo que ele a deixava toda vez que fazia um elogio. Quando à distância foi somado o tempo, a vontade de senti-lo era enorme e fazia planos para saciá-la. O desejo pela aventura tornava o planejar excitante. Quando o medo de deixar o cotidiano começou a fazer sermões sobre o imprudente, a excitação se despediu. Cinco anos depois, a chuva na janela trazia tudo isso de volta.

Nunca há de saber como teria sido. E entendeu que isso era o menos importante. A beleza sobrevivia no eterno tocar de mãos de anos atrás. Ela e ele, apaixonados, naquele tempo, eram para sempre. A intensidade estava no que foram e não no que seriam. Todo o resto é efêmero e sem valor. Guardou de volta a pulseira na gaveta. A chuva cessou.

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